OTribunal de Justiça do Rio de Janeiro acaba de baixar uma nova liminar destituindo Ednaldo Rodrigues da presidência da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). A decisão foi tomada nesta quinta-feira (15) pelo desembargador Gabriel de Oliveira Zefiro, atendendo a um pedido de Fernando Sarney, um dos vice-presidentes da entidade. Sarney (filho do ex-presidente José Sarney) alega que houve fraude em um acordo homologado em fevereiro pelo STF que possibilitou a permanência de Rodrigues no cargo. Segundo ele, a assinatura de Antônio Carlos Nunes Lima – conhecido como “coronel Nunes”, ex-presidente da CBF – foi falsificada, uma irregularidade que invalida o acordo.
Esse é mais um capítulo de uma crise que se acirrou depois da publicação, em abril, de uma reportagem da piauí que detalhou a gestão de Rodrigues à frente da CBF, com denúncias de assédio, conflitos de interesse e descontrole de contas. Ele assumiu a presidência da entidade de forma interina em 2021 e foi eleito no ano seguinte. Em dezembro de 2023, foi destituído do cargo por decisão do mesmo Tribunal de Justiça do Rio, em um processo movido por um grupo de cartolas, entre eles o coronel Nunes, que apontavam ilegalidades na sua eleição. Rodrigues recorreu ao STF e, em janeiro de 2024, o ministro Gilmar Mendes decidiu em seu favor, reconduzindo-o ao cargo. Em seguida, Gilmar homologou o acordo entre Rodrigues e os cartolas, dando fim à contenda.
No dia 28 de abril, contudo, o portal Leo Dias, conhecido por divulgar notícias de famosos, publicou uma reportagem afirmando que o coronel Nunes, de 86 anos, sofre de déficit cognitivo. O texto sugere que ele pode ter assinado o acordo judicial sem condições motoras e mentais, e que, por isso, sua assinatura corria o risco de ser invalidada. Foi o sinal necessário para que os opositores de Rodrigues entrassem em ação. No dia 5 de maio, a deputada federal Daniela Carneiro (União-RJ) acionou o ministro Gilmar Mendes pedindo a anulação do acordo e a destituição do presidente da CBF. No dia 7, Fernando Sarney fez exatamente a mesma coisa. Ambos anexaram ao processo um laudo assinado pela perita Jacqueline Tirotti, segundo o qual a assinatura de Nunes havia sido falsificada.
Gilmar Mendes agiu rápido: no mesmo dia 7, negou o pedido para remover Ednaldo Rodrigues do cargo, mas ordenou a “apuração imediata e urgente” do caso pelo Tribunal de Justiça do Rio. Chamou atenção a agilidade do ministro, mas também o teor da decisão. Segundo um especialista em direito penal ouvido pela piauí, o usual em uma situação como essa seria que Gilmar pedisse ao Ministério Público para investigar as alegações. Em vez disso, o ministro reabriu o mesmo processo que, três meses antes, ele mandara extinguir no tribunal do Rio. O desembargador Gabriel Zefiro, ao receber a papelada, também foi veloz. Expediu a liminar em sete dias, enquanto a média do Tribunal de Justiça do Rio tem sido de 121 dias, segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Na decisão de nove páginas publicada nesta quinta-feira (15), Zefiro afirmou que o coronel Nunes não está lúcido e, portanto, não poderia ter assinado o acordo homologado no Supremo. “A robustez dos indícios trazidos aos autos leva à inarredável conclusão acerca de um fato, até mesmo óbvio: há muito o coronel Nunes não tem condições de expressar de forma consciente sua vontade. Seus atos são guiados. Não emanam da sua vontade livre e consciente”, escreveu o desembargador, que nomeou Sarney como interventor na CBF. “A entidade não pode restar acéfala e é imperativo que se realizem eleições lícitas, dentro da legalidade estatutária”, justificou o magistrado.
Nada disso aconteceu por mero acaso. O vaivém de decisões judiciais é fruto de uma disputa política na CBF que tem como protagonistas Gilmar Mendes e o desembargador Luiz Zveiter, uma das figuras mais poderosas do Judiciário fluminense. Quando o Tribunal de Justiça do Rio destituiu Ednaldo Rodrigues pela primeira vez, em dezembro de 2023, não houve quem duvidasse de que por trás da decisão estava Zveiter. Seu filho, Flávio Zveiter, é um cartola que faz oposição a Rodrigues e que tentou sucedê-lo tão logo ele deixou o cargo. Da mesma forma, quando Gilmar Mendes reconduziu Rodrigues à presidência da CBF, o mundo da cartolagem não teve dúvidas de que o ministro estava guiado por interesses próprios. Desde 2023, o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), do qual Gilmar é sócio e fundador, tem um contrato milionário com a CBF. O ministro, além disso, já emplacou ao menos seis diretores na confederação. (Ainda assim, ele nunca se declarou suspeito para julgar processos que envolvem a CBF.)
A situação, no entanto, mudou nas últimas semanas. Desde que a piauí publicou a reportagem “Coisas extravagantes”, no começo de abril, revelando as gastanças e os desmandos da CBF, Gilmar Mendes se tornou alvo de críticas públicas no Congresso e nas redes sociais. O texto detalhou também pagamentos suspeitos a advogados antes de decisões judiciais favoráveis à CBF e a cartolas aliados do presidente. O caldo engrossou sobretudo depois que parlamentares da extrema direita passaram a pressionar o ministro, ameaçando instalar CPIs para investigar o caso.
A decisão de remeter o processo ao Tribunal de Justiça do Rio indica que Gilmar Mendes, depois de todo o desgaste à sua imagem, resolveu, enfim, pular do barco de Ednaldo Rodrigues. Dias antes de protocolar o pedido de afastamento do presidente da CBF, Fernando Sarney esteve com Francisco Schertel Mendes, filho do ministro, para tratar do assunto. Ao que tudo indica, foi um jogo combinado. Gilmar Mendes negou o pedido de afastamento de Rodrigues, mas, na prática, jogou o antigo aliado aos leões.
Graças ao ministro do Supremo, o processo judicial que dormia nas gavetas do Tribunal de Justiça do Rio foi reavivado sob a relatoria do desembargador Gabriel Zefiro, que é muito próximo de Luiz Zveiter e participa, como ele, da maçonaria. “Eu confesso que, quando vou tomar uma atitude, eu converso com ele [Luiz Zveiter] primeiro. […] Se ele disser que não é para fazer, eu vou pensar muito antes”, disse Zefiro em um discurso na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), no ano passado. Em dezembro de 2023, Zefiro também estava entre os desembargadores que votaram a favor do afastamento de Ednaldo Rodrigues.
Não se sabe se, na última semana, ele buscou os conselhos de Zveiter. O fato é que não titubeou: no dia 8 de maio, apenas 24 horas depois da decisão de Gilmar Mendes, o desembargador marcou um depoimento do coronel Nunes para a segunda-feira seguinte, dia 12. O advogado de Nunes, André Mattos, foi intimado e informou que seu cliente não poderia comparecer, pois estava passando por exames clínicos no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Mais uma excentricidade: Mattos, embora tenha representado Nunes no processo contra a CBF, é o diretor jurídico da confederação, apoiado por Gilmar Mendes.

Ednaldo Rodrigues havia sido reeleito, em março deste ano, para um novo mandato à frente da CBF. Recebeu apoio unânime dos clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro e dos presidentes das federações estaduais. Contava, até então, com o amparo poderoso de Gilmar Mendes. O ministro, não bastasse os seis diretores de sua confiança, indicou recentemente um dos oito vice-presidentes da CBF, Gustavo Dias Henrique.
Rodrigues, desde então, fez o que pôde para preservar seu mandato. No dia 12, quando o processo já tramitava com urgência no Tribunal de Justiça do Rio, ele anunciou o italiano Carlo Ancelotti como o novo técnico da Seleção masculina. A novidade foi bem-vinda depois de uma sequência de fiascos nas negociações, mas não bastou para reverter a situação. No dia seguinte ao anúncio, Rodrigues se reuniu na sede da CBF com os presidentes das federações estaduais. Buscava apoio político, e garantiu ter o respaldo de Gilmar Mendes na briga com Zveiter. Dos 27 presidentes, cinco não compareceram, incluindo o do Rio, Rubens Lopes, o que foi lido como um sinal de enfraquecimento político de Rodrigues. Os cartolas ficaram irritados ao descobrirem, recentemente, que o presidente da CBF fez várias modificações no estatuto da entidade sem avisá-los. Essas mudanças possibilitam, entre outras coisas, que Rodrigues concorra a um terceiro mandato.
Agora, com a nova decisão da Justiça, os opositores apostam que Rodrigues também deve ser suspenso do cargo pelo comitê de ética da CBF. Em 10 de maio, a deputada Daniela Carneiro e o vereador do Rio de Janeiro Marcos Dias Pereira (Podemos) pediram que o cartola fosse investigado pela assinatura supostamente falsa do coronel Nunes e pelos relatos de assédio moral contra funcionários, revelados na reportagem da piauí. A comissão abriu duas investigações, que ainda estão em curso.
Com Rodrigues fora do cargo, os clãs Mendes e Zveiter já discutem quem apoiar na próxima eleição da CBF, ainda sem data para ocorrer. Cartolas ouvidos pela piauí dizem haver uma grande possibilidade de que o escolhido seja o próprio Fernando Sarney ou um presidente de uma das federações da região Norte, com os quais Gilmar Mendes e seu filho têm maior proximidade. A piauí perguntou à Fifa, entidade que tem sido crítica a casos de interferência política no futebol, como ela se posiciona diante do fato de um ministro do STF deter tanto poder na CBF. Não houve resposta até o fechamento desta reportagem.
Apesar das evidências robustas de que há um conflito de interesses na atuação de Gilmar Mendes e do pagamento suspeito a advogados antes de decisões judiciais favoráveis à CBF, a assessoria da Procuradoria Geral da República (PGR) informou à piauí que não há, por ora, nenhuma investigação aberta sobre o caso (o órgão ressalta a possibilidade de haver procedimentos sigilosos, que não são registrados no sistema interno da Procuradoria). “Se hoje algum procurador mexer nesse assunto, em pouco tempo estará respondendo a processo disciplinar no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que hoje é controlado pelo ministro”, disse à piauí um procurador do Ministério Público Federal. Ele pediu para não ter seu nome revelado, por medo de sofrer represálias.
Horas depois da publicação da liminar, os presidentes de dezenove das 27 federações estaduais migraram para a oposição. Eles assinaram um manifesto em que anunciam a formação de uma chapa única para concorrer à presidência da CBF e, sem citar Rodrigues, criticaram sua gestão. O texto diz que a entidade está “sufocada por uma estrutura excessivamente centralizada” e defende “uma renovação de ideias, de práticas e de lideranças, bem como a profissionalização definitiva das estruturas de gestão”. Ainda nessa quinta-feira (15), Rodrigues recorreu a Gilmar Mendes para tentar reverter a decisão do Tribunal de Justiça do Rio. O ministro, até o momento, não se manifestou.
Por Allan de Abreu- Revista Piaui